Eleições presidenciais na Argentina – Massa vence, mas haverá segundo turno

Gabriel Gomes
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Com eleições em um cenário de crise econômica e desconfiança das instituições, os eleitores argentinos foram às urnas neste dia 22, para eleger o novo presidente. Além disso, a eleição deste domingo poderá afetar profundamente as relações do país com seus vizinhos.

O resultado final, que será conhecido após a votação do segundo turno em 19 de novembro, deverá ter grande importância para os rumos da política interna da Argentina.

O contexto das eleições


A inflação argentina passou de 138% ao ano, a elevação no preço dos alimentos foi ainda maior, diante disso, mais de 40% da população do país atende os critérios locais de classificação como pobreza. Ademais, o peso continua a se desvalorizar e, no mercado paralelo, aquele vigente para a maioria da população, vale por volta de um milésimo de dólar.

A crise contribuiu para impulsionar a candidatura do economista Javier Milei. Ele se classifica como anarcocapitalista, ou seja, defensor de uma radical redução do papel do Estado dentro do sistema capitalista.

Primordialmente, Milei defende posições como um corte radical dos subsídios e do tamanho do Estado, desregulamentação sistemática da economia e abertura comercial radical. Ele é contra o aborto, recentemente legalizado na Argentina, e medidas de contenção da emissão de gases causadores do efeito estufa.

Surpreendentemente, como forma de recuperar o valor da moeda nacional e conter a inflação, Milei propôs a dolarização da economia argentina. Em geral, os economistas veem com ceticismo as chances de sucesso da ideia.

Eles apontam problemas como a insuficiência das reservas de dólares do país para lastrear a economia, a perda de autonomia monetária do país e o risco de perda de competitividade dos produtos nacionais.

A dolarização da economia foi uma das bases da estabilização da economia da Argentina nos anos 90. Contudo, explodiu espetacularmente no início deste século em um contexto de recessão prolongada e alto endividamento do país.

Consequentemente, o governo da época tomou uma série de medidas restritivas, apelidadas de corralito (“curral”, em espanhol), para impedir que os depositantes retirassem em massa seus fundos do sistema bancário.

No entanto, essa história de fracasso da dolarização pode ter pouca influência sobre os eleitores, sobretudo os mais jovens, atingidos mais pesadamente pelo desemprego.

Crise, política e criptomoedas


Embora a crise continue a se agravar, ela, em uma forma ou outra, já era um dos personagens principais das últimas eleições presidenciais. Na penúltima, o vencedor foi o conservador Mauricio Macri.

Mais recentemente, Macri, em busca da reeleição, foi derrotado pelo atual presidente, o socialista Alberto Fernandez. Apesar da alternância, poucas melhoras significativas aconteceram, e muito piorou.

As restrições que o governo impôs à movimentação de fundos durante o corralito e as subsequentes intervenções estatais, como frequentes criações e aumentos de tributos, contribuíram para criar uma cultura de informalidade.

Consequentemente, os argentinos tendem, por exemplo, a evitar os bancos. Com o intuito de driblar as consequências das políticas governamentais, especialmente a elevada inflação, os argentinos usam, entre outros recursos, as criptomoedas.

Pesquisas recentes indicam ser especialmente elevada a taxa de adoção das criptomoedas no país. Em 2022, o Índice Global de Adoção de Criptomoedas da empresa de pesquisas sobre blockchain Chainalysis classificou a Argentina em décimo terceiro lugar.

Primeiramente, o interesse por stablecoins atreladas ao dólar, como forma de preservar o valor das economias, é especialmente grande. Assim, dados das redes de blockchain indicam que parcela considerável dos pagamentos na Argentina usam como meio as stablecoins USD Coin e Tether.

Em pesquisa da Americas Market Intelligence, quase 30% dos argentinos entrevistados afirmou que comprou criptomoedas regularmente em 2022 passado. Além disso, 98% dos argentinos consultados estavam cientes das criptomoedas, e 20% tem planos de comprar criptoativos.

Os candidatos das eleições


Desde o final dos anos 40, alternam-se à frente do governo argentino duas correntes que podem ser chamadas de peronista e anti-peronista. Primeiramente, o que as divide é a sua posição frente ao legado do líder populista argentino, o general Juan Domingo Perón.

Presidente argentino de 1946 a 1955, quando foi derrubado por um golpe, e de 1973 a 1974, quando faleceu. Sob sua batuta, houve uma radical expansão da seguridade social e das obras públicas.

Em tempos mais recentes, o legado peronista esteve sob a hegemonia do kirchnerismo, vertente do falecido presidente Néstor Kirchner e sua viúva, a ex-presidente e atual vice-presidente Cristina Kirchner.

A crise econômica, porém, minou o kirchnerismo, que precisou aceitar a candidatura de Massa, um dos rivais dos Kirchners no campo peronista.

Milei é o fato novo

Todavia, um dos pontos interessantes da eleição deste domingo é que, com a ascensão de Milei, foge do modelo de disputa entre as duas correntes tradicionais.

Além de Milei, apresentavam chances de vencer a eleição presidencial, Sergio Massa, atual Ministro da Fazenda, representando o atual governo, e Patricia Bullrich, que serviu no ministério do ex-presidente Macri.

Além de apresentar propostas de mudanças econômicas profundas, Milei explora a imagem de outsider e inspira muito de sua retórica entre Trump e Bolsonaro. Ademais, sua campanha usa as redes sociais com mais habilidade que a direita e a esquerda tradicionais.

Foi possível ter uma amostra das forças eleitorais comparativas dos candidatos nas primárias de agosto. Essa disputa escolheu os candidatos a presidente. Nela, cada eleitor teve direito a um voto, que pôde dar a qualquer dos pré-candidatos.

O pré-candidato mais votado de cada aliança torna-se seu candidato. Mesmo alianças com um só pretendente à presidência devem participar das primárias. Se os pré-candidatos de uma aliança não receberem pelo menos 1,5% dos votos válidos na primária, ela não pode ter candidato na eleição presidencial.

Milei, o único candidato da aliança A Liberdade Avança, terminou as primárias à frente, com 29,86% dos votos. Em segundo lugar, ficou Sergio Massa, que conseguiu 21,40% dos votos e bateu facilmente Juan Gabrois pela candidatura do bloco União pela Pátria, governista.

O terceiro lugar ficou com Patricia Bullrich, que conseguiu 17,01% e derrotou Horacio Rodríguez Larreta, com 11,16% dos votos, pela candidatura do bloco antiperonista Juntos pela Mudança. Somados os votos de Bullrich e Larreta, a aliança Juntos pela Mudança foi a segunda em total de votos.

Para que as eleições fossem resolvidas no primeiro turno, seria preciso que um dos candidatos recebesse ao menos 45% dos votos válidos ou ao menos 40% deles e ficasse 10 pontos percentuais ou mais à frente do segundo candidato mais votado.

Sergio Massa é o candidato governista

Embora obviamente o descalabro econômico o prejudique, na dupla condição de governista e ministro da Fazenda, Sergio Massa, que era presidente da Câmara, assumiu o cargo em agosto do ano passado. A economia já estava, então, em processo acelerado de deterioração. Massa tem imagem de mais moderado e mais próximo do mercado.

Ele promete estimular as exportações, para fortalecer o peso, e defende uma maior ligação de programas sociais com os de treinamento profissional. Assim, defende, os beneficiários pela seguridade social estarão em condições de dispensarem-na no futuro.

Possíveis consequências da vitória de Milei


Contrariando as expectativas de muita gente, mesmo liderando na maioria das pesquisas, Milei terminou as votações deste domingo em segundo lugar. Ele recebeu quase 30% dos votos, enquanto o governista Sergio Massa surpreendeu e ficou com cerca de 36% dos votos válidos.

A vitória de Milei, que conta com o apoio do ex-presidente Bolsonaro, pode levar a um afastamento da Argentina de parceiros à frente do qual estejam líderes de esquerda, como o Brasil. O presidente Lula, que não disfarça suas simpatias pela candidatura governista, já foi alvo de duras críticas de Milei.

O afastamento político, em combinação com as medidas que provavelmente serão necessárias para conter a inflação e restaurar o valor do peso, podem prejudicar as indústrias brasileiras, como a de calçados, que exportam para a Argentina. O país vizinho é nosso terceiro maior parceiro comercial, apenas atrás de China e Estados Unidos.

No entanto, é difícil fazer previsões. Como Milei não contaria com base parlamentar suficiente para levar a cabo suas propostas, ele provavelmente precisaria fazer acordos com a mesma classe política que denuncia ferozmente.

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