Governo faz primeira investida por regulação de aplicativos

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O governo federal encaminhou ao Congresso Nacional uma PLC (Proposta de Projeto de Lei Complementar) que regulamenta o trabalho dos motoristas de aplicativos, como Uber e 99. O projeto foi apresentado no dia 4 de março, em uma cerimônia que contou com a presença do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva.

Durante o evento, Lula e seu ministro do Trabalho, Luiz Marinho, aproveitaram para mandar recados para o iFood e o Mercado Livre. Afinal, os serviços de entregas por aplicativo estão na mira do governo. Portanto, a expectativa é de que haja em breve outra investida para tratar justamente da atuação dos entregadores.

O que diz o projeto de lei para motoristas de aplicativos


Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tinha 778 mil pessoas trabalhando em apps de transporte de passageiros em 2022. Isso equivalia a 52,2% dos trabalhadores atuando por meio de plataformas digitais. Além disso, 70,1% deles trabalhavam informalmente.

Para tentar dar mais segurança a esses trabalhadores, o governo iniciou uma negociação entre representantes das empresas e dos profissionais que atuam por meio de aplicativos. Ou seja, o projeto apresentado agora ao Congresso é fruto de acordos costurados com ambos os lados dessa indústria.

O PLC ainda poderá sofrer alterações. Afinal, será analisado por deputados e senadores antes de uma eventual aprovação.Confira os principais pontos presentes no projeto:

Remuneração

Um dos pontos-chave do projeto é a instituição de um valor mínimo por hora de R$ 32,90 para os motoristas. Esse valor prevê R$ 24,07 para cobrir custos do trabalhador, como gasolina, internet e manutenção do veículo. Além disso, R$ 8,03 seriam considerados remuneração efetiva do trabalhador.

Esses valores teriam como base o salário mínimo nacional, que é de R$ 1.412 atualmente. Portanto, o projeto também define parâmetros para a jornada de trabalho. A previsão é de 8 horas diárias (ou 176 horas mensais), podendo chegar a, no máximo, 12 horas por dia. Também haverá regras para impedir os aplicativos de limitar a distribuição de viagens.

Acordo coletivo

A nova legislação deverá consolidar os acordos e convenções coletivas como instrumentos principais de negociação entre as plataformas e os motoristas. Essa é uma mudança importante, uma vez que não existe um canal consolidado para negociações desse tipo, atualmente. Ou seja, não há uma representação efetiva das reivindicações da categoria junto às empresas.

Com a nova legislação, temas como plano de saúde, horas extras e seguro de vida poderão ser negociados por meio de acordo coletivo. Além disso, esses acordos não poderão ser desfeitos por acordos individuais. Na prática, isso deve levar a uma sindicalização da categoria, com a necessidade de registro dos sindicatos que vierem a surgir.

Previdência social

Pelas novas regras do PLC, os motoristas terão que fazer uma contribuição obrigatória de 7,5% sobre o valor que receberem. Ao mesmo tempo, as plataformas precisarão garantir uma contrapartida de 20% sobre o mesmo valor de remuneração.

Além disso, todos os trabalhadores serão enquadrados no Regime Geral de Previdência Social do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Então, garantirão o acesso a benefícios como licença maternidade e auxílio doença.

Para efeito de comparação, atualmente, os motoristas precisam se registrar na modalidade de Microempreendedor Individual (MEI) para estarem inscritos no INSS. Depois, devem realizar os pagamentos previstos em lei. No entanto, apenas 23% dos trabalhadores pagam essa contribuição.

Outras regras relevantes

O projeto de lei do governo cria a categoria de “trabalhador autônomo por plataforma”. Além das regras descritas acima, ela traz outras novidades importantes para as pessoas que realizam essa atividade.

Um dos aspectos básicos é que não haverá acordos de exclusividade. Portanto, os motoristas poderão trabalhar para quantos aplicativos quiserem. Além disso, as empresas precisarão informar aos profissionais o modelo que utilizam para oferecer viagens, assim como os critérios de composição da sua remuneração e avaliação.

Por fim, a nova legislação teria o efeito de limitar as formas de exclusão de motoristas de uma plataforma. As hipóteses ficariam restritas a casos de:

  • Fraudes
  • Abusos
  • Mau uso da plataforma

Ainda neste tema, todos os trabalhadores terão direito a ampla defesa no caso de um trâmite de exclusão de aplicativo.

Governo celebra texto do projeto


O presidente Lula celebrou o texto da nova lei, argumentando que ele pode trazer uma proteção maior aos trabalhadores:

“Vocês acabaram de criar uma nova modalidade no mundo de trabalho. Foi parida uma criança no mundo do trabalho. As pessoas querem autonomia, vão ter autonomia, mas precisam de um mínimo de garantia.”

A manutenção da autonomia dos trabalhadores é um ponto importante da proposta. Aliás, foram os próprios representantes dos motoristas que mencionaram a preferência por esse formato, sem vínculos empregatícios com os aplicativos. No entanto, isso não os impediu de reivindicar mais direitos.

Como ressaltou o ministro Luiz Marinho:

“O que nasce aqui é uma organização diferenciada: autônomo com direito. Poderão ficar vinculados a tantas plataformas quiserem, organizarem seus horários, mas terão cobertura de direitos.”

Após assinar o documento, Lula também salientou que ainda falta o Congresso aprovar a proposta. A expectativa do governo é de que não haja muitas mudanças ao texto original. Afinal, ele surgiu de um grupo de trabalho que reunia não apenas representantes do governo e dos trabalhadores, mas também das empresas.

Criado em 2023, o grupo ainda contou com a supervisão da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Ministério Público do Trabalho (MPT).

Plataformas também comemoram


Publicamente, os aplicativos reagiram de forma positiva ao projeto de lei. O Uber, por exemplo, lançou uma nota oficial com elogios à proposta.

“A empresa valoriza o processo de diálogo e negociação entre representantes dos trabalhadores, do setor privado e do governo, culminando na elaboração dessa proposta, a qual inclui consensos como a classificação jurídica da atividade, o modelo de inclusão e contribuição à Previdência, um padrão de ganhos mínimos e regras de transparência, entre outros.”

O Uber é uma das empresas mais atingidas pela nova legislação, ao lado da 99. A Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa essas e outras plataformas líderes do mercado, também celebrou o texto do projeto em nota oficial:

“A proposta confere segurança jurídica para as empresas investirem no Brasil e agrega benefícios para os trabalhadores, como inclusão no sistema previdenciário, cuja contribuição será feita por empresas e trabalhadores, definição de ganhos mínimos e regras de transparência, entre outros avanços.  A inclusão dos trabalhadores na Previdência Social, que foi proposta pelas empresas associadas à Amobitec em abril de 2022 por intermédio da nossa Carta de Princípios, representa um avanço social que vai impactar 1,2 milhão de motoristas que hoje usam as plataformas digitais como intermediadoras para a prestação de serviços para seus clientes. Da forma como foi acordada entre os participantes do Grupo Tripartite, a proposta contempla as prerrogativas de uma atividade na qual a independência e a autonomia do motorista são fatores fundamentais.”

Há a possibilidade de que as empresas consigam atenuar ainda mais o texto do projeto. Afinal, o lobby a seu favor no Congresso costuma ser mais forte do que aquele obtido junto ao governo Lula. Portanto, não se descarta a possibilidade de uma contribuição ainda menor das plataformas para a previdência dos motoristas, por exemplo.

Representantes dos motoristas divergem sobre proposta


A recepção ao texto do novo projeto variou bastante entre as entidades que buscam representar a categoria dos motoristas. Atualmente, existem diversas organizações com diferentes pontos de vista sobre a forma como a atividade deve ser regulada e as prioridades dos trabalhadores.

Por exemplo, o presidente do Sindicato de Motoristas de Aplicativo do Estado de São Paulo (Stattesp), Leandro Medeiros, destacou a criação de um canal de negociação entre os trabalhadores e as empresas:

“Hoje, o trabalhador não tem direito a nada. O que as empresas colocarem ele é obrigado a acatar. Com a regulamentação sendo aprovada, as empresas não vão poder mais fazer o que elas querem. Terá que ter uma mesa de negociação com acordos coletivos.”

A presidente do Sindicato dos Motoristas por Aplicativo de Mato Grosso (Sindmapp), Solange Menacho, também elogiou aspectos como a imposição dos acordos coletivos e a obrigatoriedade da adesão à Previdência Social. No entanto, achou baixo o valor mínimo de R$ 32 por hora.

Por outro lado, o presidente da Associação dos Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amaps), Eduardo Lima de Souza, criticou a proposta. ele se posicionou contra o papel dos sindicatos na negociação com as empresas.

“A nossa classe é repleta de trabalhadores autônomos, trabalhadores que já saíram de CLT, fugindo tanto de CLT quanto de sindicatos.”

Durante as discussões do projeto, chegou a ser cogitada a adesão dos motoristas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), mas isso acabou sendo descartado.

Discussão sobre empregadores deve ser mais tensa


Durante a cerimônia de assinatura do projeto dos motoristas pelo presidente Lula, o governo mandou recados para os aplicativos de entregas. Isso sugere que as discussões poderão ser mais conturbadas neste caso.

O próprio Lula tratou de citar nominalmente o iFood, maior aplicativo do setor:

“O iFood não quer negociar. Pois nós vamos encher tanto o saco, que o iFood vai ter que negociar.”

O ministro Luiz Marinho também citou o iFood, além de mencionar o Mercado Livre durante seu discurso no evento:

“Espero que a partir desse Projeto de Lei, inclusive influencie os demais segmentos para que a gente possa voltar à mesa. Não adianta o iFood mandar recado. (…) Nós conversamos o ano inteiro, mas o iFood e as demais, Mercado Livre, enfim, diziam o seguinte: que o padrão dessa negociação não cabe no seu modelo de negócio porque é um modelo de negócio altamente explorador.”

As empresas evitaram entrar em confronto direto com o governo após as críticas. No entanto, emitiram notas rebatendo o que foi dito. Além disso, disseram que estão abertas ao diálogo. O iFood, por exemplo, afirmou que:

“…não é verdadeira a fala do ministro Luiz Marinho de que a empresa não quer negociar uma proposta digna para entregadores. O iFood participou ativamente do Grupo de Trabalho Tripartite e negociou um desenho regulatório para os entregadores até o seu encerramento.”

Já o Mercado Livre soltou comunicado com as seguintes palavras:

“Sobre os comentários envolvendo o Mercado Livre, durante solenidade voltada à regulamentação do trabalho em aplicativos de transporte no país, realizada hoje (04) em Brasília (DF), a empresa esclarece que, diferente do que foi dito, atua de diferentes formas nesta agenda setorial, tendo participado ativamente desde o início da constituição e execução do Grupo de Trabalho (GT) junto ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).”

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